quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Regras para um Método: o conceito de Fato Social

A influência do positivismo de Comte fez Durkheim admitir a referência dos fenômenos ocorridos a existência de um “reino social”, alcançado cientificamente. No prefácio de suas Regras do Método Sociológico, Durkheim afirma a necessidade de separação entre “senso comum” e pensamento científico, mesmo que isso implique a descoberta de conexões aparentemente perniciosas,
É preciso que o sociólogo tome resolutamente o partido de não se intimidar com os resultados alcançados pelas pesquisas, quando metodicamente conduzidas, a menos que, em sociologia, se conceda ao senso comum uma autoridade que há muito tempo não goza nas outras ciências e que aliás não vemos onde lhe poderia provir. (Durkheim. As Regras do Método Sociológico, 1990, p. XV)
Esta afirmação, presente no prefácio à primeira edição, iria ganhar, alguns anos depois, a companhia de um segundo prefácio mais extenso, já na tentativa de se defender das inúmeras críticas ao entendimento dos fenômenos sociais, mais especificamente sobre o papel do “crime” na sociedade. Mesmo assim, o fragmento passa a ser exemplar ao longo do livro dentro da tentativa terminantemente metodológica de dar contornos à sociologia enquanto ciência. Como veremos, o ganho mais significativo é o conceito de fato social.
A separação entre a consciência individual que temos dos fenômenos e sua real significação coletiva é capital para o esquema das Regras. O indivíduo, segundo Durkheim, teria uma percepção muito limitada dos acontecimentos mais amplos, justo porque não foi ele quem os criou sozinho. De certo, em algum momento da história indivíduos interagiram e deram, eles próprios, sentido ao todo. Não de acordo com sua vontade livre, mas dentro de um sistema de convívio comum. Na sociologia alemã, Simmel já teria apontado a possibilidade de formas sociais, erigidas a partir de uma “matéria” da vida, passarem para a posteridade se impondo na busca por execução. A forma peculiar como o homem, não dotado de cio como os animais, se reproduz e socializa seus “novos” elementos, faria com que as formas erigidas tivessem uma força muito maior em relação às possibilidades de mudança. Mesmo porque, “formas” se mantém imortais ante a precibilidade da “matéria”, segundo Simmel. No termos de Durkheim, o todo, depois de formado, passa a ter vida própria.
O organismo social passaria a independer da existência ou não de determinados indivíduos. Certamente a sociedade só pode se realizar nas suas partes. No entanto, a intenção do autor é apresentar uma sociedade como sendo “maior que a simples soma dos indivíduos” que a compõem. Algumas conseqüências dessa adoção tornam-se possíveis.
Admitir que os fenômenos sociais têm sua base de significação no todo e não nas partes, permite o autor das Regras sustentar a limitação da consciência individual, consequentemente, sustentando a limitação do senso comum: como não foi o indivídio quem criou o todo, o todo não encontra explicação dentro dele. Aqui reside a adoção do coletivismo metodológico e a principal cisão entre Durkheim e Weber.
O sociólogo estuda, dessa forma, fenômenos por ele desconhecidos e deve adotar o estranhamento necessário para não incorrer nos erros do seu senso comum sobre as coisas. O conhecimento matemático e os fatos que são objetos da sociologia reinam em campos distintos de explicação. Numa comparação possível com empirismo de David Hume: não foi o homem quem criou a vida, por isso o acesso a sua essência é impossível. Só podemos perceber os fenômenos, que são manifestações dessa essência. Da mesma forma, não foi o homem quem criou a sociedade, ela é fruto da interação de vários homens em tempos pretéritos, e passa para a prosperidade como um imperativo a ser seguido. Estudaremos seus fenômenos levando tal raciocínio em consideração (Durkheim, 1990).
Já que não podemos reduzir os fenômenos sociais aos indivíduos – assim como não podemos reduzir a vida às células – qual recurso nos dará a possibilidade de estudo? A observação empírica de diferentes países – em sua formação e acontecimentos históricos – num dado recorte temporal, transparece a presença de regularidades estatísticas sobre determinados fenômenos. Será essa percepção que irá possibilitar ao autor o estudo do suicídio enquanto um comportamento socialmente condicionado. Isso porque, se há uma regularidade, a possibilidade do organismo social ser o determinante da tais fenômenos é viável. Chegamos, assim, ao conceito chave do autor: o fato social.
É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter. (Durkheim. 1990: 11)
A regularidade da vida e a durabilidade do organismo social são garantidas, assim, pelo caráter coercitivo – que constrange as ações individuais – pelo estatuto de exterioridade – que independe dos indivíduos – e pela generalidade – que assegura sua existência na extensão de uma dada sociedade. Ainda buscando precisão metodológica, se tais fatos são ao sociólogo estranhos, ele deve “considerar os fatos sociais como coisas” (Ibid. 13). Isso faria com que nos livrássemos das noções sensíveis que temos da realidade, como possíveis observações ideológicas. Certamente tal conceito envolve aproximações mais profundas. Mesmo assim, por hora ele nos serve para percebermos a potencialidade das instituições sociais no constrangimento individual.
Independentemente da polêmica que tal afirmação suscita, a ferramenta construída por Durkheim viria a ganhar importância seminal no pensamento sociológico. Afirmar a sociedade como um corpo normativo, mais ou menos explícito, capaz de constranger os indivíduos, nos permite perceber como a criatividade individual é cerceada por imposições de sua época. Certo é que os indivíduos não reagem de forma idêntica aos estímulos do meio, nem ao menos Durkheim teria afirmado isso. Como veremos posteriormente, a discussão sobre o processo de divisão do trabalho social, apesar de cronologicamente anterior, nos dará base para percebermos as particularidades do mundo contemporâneo.

sábado, 6 de setembro de 2008

Émile Durkheim (apresentação)

Na França da segunda metade do século XIX, uma época de progresso tecnológico e industrial, o poder explicativo das ciências naturais – já invejado por Auguste Comte nos primeiros passos de sua “física social” –, a nascente psicologia experimental – na figura de Wundt – que se dizia uma “ciência de estudo do indivíduo”, e a própria identificação entre a sociologia e a militância do pensamento marxista na construção do socialismo, fizeram com que Émile Durkheim (1858-1917) atuasse na formulação de um estatuto científico específico para a sociologia enquanto disciplina acadêmica. Algo que tornou o autor precursor de alguns marcos para o pensamento sociológico: um modelo explicativo para os acontecimentos recentes – Da Divisão do Trabalho Social­ de 1893 – um livro terminantemente metodológico – As Regras do Método Sociológico de 1895 – uma monografia exemplar – O Suicídio de 1897. Durkheim tornou-se, ainda, o primeiro professor da disciplina na Sorbonne em 1902, colaborando decisivamente para sua institucionalização.
A perspectiva histórica de Fustel de Coulanges, bem como a herança do Iluminismo representara pela “lei do progresso”, consideram o homem – objeto de reflexão da sociologia – como inserido num conjunto de transformações históricas conseqüentes, que devem ser desvendadas para o correto entendimento da sociedade. Esse legado marca a biografia de Durkheim, e transparece ao longo de sua obra.
O grande desafio do autor era estabelecer contornos a uma região limítrofe, ainda tênue, entre sociologia e psicologia. Ambas as disciplinas lidavam com o “homem” em sociedade, pretendendo extrair explicações sobre seu “funcionamento” em diferentes contextos e situações. O desafio que se colocava para a sociologia dizia respeito, também, as possibilidades laboratoriais já existentes no campo da psicologia, o que questionava o contribuição da nova ciência.
Nos anos de 1885 e 86, Durkheim esteve na Alemanha na tentativa de recuperar alguns pontos ainda obscuros em sua formação. Lá o autor entrou em contato com as obras de Simmel, Tönnies, Dilthey, bem como tornou-se aluno de Wundt e testemunhou sua proposta de “introspecção” por meio de experiências concretas. Com certeza tais descobertas afetaram a produção do autor. Porém, o importante para nossos propósitos é perceber como a tentativa de elaborar um estatuto próprio para o pensamento sociológico, fez com que Durkheim obtivesse alguns inegáveis ganhos metodológicos para o estudo do comportamento grupal, formatando a ciência sociológica.