segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O uso da cetagoria Fetichismo em Marx e Simmel

O trabalhador se torna mais pobre quanto mais riqueza ele produz, quanto mais sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.
Karl Marx – O trabalho alienado (manuscritos econômico-filosóficos de 1844).
Tornam-se compreensíveis dois fenômenos negativos correspondentes da história do espírito. Um deles é o fato de pessoas do mais profundo interesse cultural apresentarem, amiúde, uma estranha indiferença – e mesmo recusa – paca com os conteúdos objetivos da cultura (...) Um outro é o surgimento de fenômenos que apenas parecem ser valores culturais, com certas formalidades e refinamentos da vida.
Georg Simmel – O conceito e a tragédia da cultura.
O extermínio das antigas formas de sociabilidade operado no desenvolvimento da sociedade industrial ocasiona um fenômeno que une analiticamente Marx e Simmel, sob o abrigo da noção de “fetichismo”: a desvalorização do “mundo dos homens” relacionada ao florescimento do sistema capitalista. Certamente o século XIX testemunha uma fundamental ampliação nas possibilidades de realização do homem, tendo a divisão do trabalho como motor. No entanto, a criação de valores materiais que se sobrepõem aos valores tipicamente humanos apresenta-se como uma conseqüência negativa inevitável no transcurso do avanço de trabalho industrial.
O aumento do potencial produtivo – marca do capitalismo nascente – não significou igualdade de condições no acesso aos bens materiais gestados pelo trabalho. Foi a própria incapacidade de colocar os homens em patamar de igualdade que criou o mote para reflexão social desde o século XIX (ARON, 2002): a riqueza produtiva que não implicou valorização do elemento humano é o produto “traumático” de uma realidade cujo capital – por meio de uma dinâmica autônoma – subjuga as demais esferas da vida ao seu critério de sucesso. É precisamente nesta unidade reflexiva que Marx – em termos históricos – e Simmel – numa chave cósmica, metafísica – vão formular “biografias” para o mundo moderno, exercício hora anatômico, hora místico.
Na raiz de tudo isso um processo que pode ser encarado como a “possibilidade” de realização: a divisão do trabalho. O desenvolvimento do capitalismo e o aumento da divisão do trabalho são dados indissociáveis, o que faz deste matéria recorrente na reflexão sociológica. Fatalmente Marx e Simmel também se ocupariam de tal assunto no intento de procurar causas para a conseqüência última observada na sociedade industrial: o homem que perde valor perante as coisas materiais que ele criou.
Nosso Marx, aqui, é o “cientista” – mesmo dotado de militância, paixão – que ainda demonstra a influência de Hegel mesmo nos estudos do “Capital”. Alguém que parte de uma espécie de antropologia filosófica para dissecar a sociedade capitalista, percebendo o movimento dialético em sua unidade mais elementar. Nosso Simmel será, sempre, o “vitalista” que não apenas foge da síntese, mas se exime de procurá-la. Alguém que “refina” sua análise da história à metafísica procurando uma filosofia que sustente seu olhar sobre o efêmero. Entre ambos mais a possibilidade de “contraste” do que de confronto: a partir de “ferramentas” talvez distintas, os autores caminham analiticamente pelo mundo contemporâneo “sem sentido”, buscando lastro em fenômenos como a divisão do trabalho. O tratamento que Simmel dá a este tema será desenvolvido com maior profundidade em sua reflexão voltada para a formulação de uma “filosofia da cultura” (aqui discutida na postagem sobre Cultura e Civilização em Simmel e Durkheim).
O componente da “paixão” presente no “Capital” situa-se precisamente na imaginação inicial – realizada nos manuscritos de 1844 – de uma sociedade utópica onde as condições de liberdade poderiam ser encontradas, em concomitância a postulação a priori de uma natureza humana atemporal. Ainda prematuramente, o tema do fetichismo tem em Marx uma denominação filosófica hegeliana: alienação, ou estranhamento na terminologia idealista. Noção esta que está pulverizada na sociedade capitalista industrial, dotada de uma lógica que faz do produto do trabalho algo maior que o próprio trabalhador: seres humanos criadores que se perdem no interior de suas próprias criaturas. Aqui a idéia de “queda” do homem – presente no mito judaico-cristão – é estendida para “todas as esquinas” do mundo moderno (BOUDON & BOURRICAUD 2002). Essa reflexão sobre o ser e o objeto é o ponto de interseção entre Marx e Simmel com nuances conclusivas distintas, porém não opostas.
Como eliminar o trabalho “alienado” é uma pergunta talvez inocente ante o desafio de descrever o mundo em que ele se encontra. Ainda porque, abolir a divisão do trabalho nas sociedades complexas é uma alternativa descartada até no diagnóstico de “anomia” dado por Durkheim (ver a discussão abaixo sobre Durkheim). Suspenso, mesmo que apenas na aparência, o furor “revolucionário”, a tarefa a qual Marx se propõe é estudar a anatomia do mundo contemporâneo (capitalista), sendo ele o momento onde o desenvolvimento da história da humanidade culmina. A proposta é analisar o menos desenvolvido e o processo do desenvolvimento, partindo da mais desenvolvido. Marx associa o método histórico ao dedutivo.
O princípio ordenador a partir do qual entenderemos a sociedade é a forma mais elementar de riqueza encontrada no “teatro” capitalista: a mercadoria. Esta, tomada isoladamente, constitui o princípio molecular do mundo que a acumula. É importante como Marx começa por definir a mercadoria a partir da idéia de “necessidade”, pois é justamente esta que, sendo elaborada socialmente, abre caminho para o fetiche: “o apetite do espírito é tão natural quanto a fome para o corpo”.
A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção (MARX, 1968: 41).
A “necessidade” e a “utilidade” passam a ser noções indissociáveis na conceituação da mercadoria: é a eficácia na satisfação das necessidades que imputa nas mercadorias seu “valor” por meio de um princípio de “utilidade”. Fato é, que no reino do útil a qualidade da mercadoria não depende da quantidade de tempo empregado na sua consecução. Sua valoração não prima, inicialmente, pela eficiência. As “necessidades” podem ter origens diversas, ganhando cores e intensidades desafiadoras num processo de quantificação, já que também se ligam a condições do “espírito”. Satisfazê-las obedece a ordem o terminantemente subjetivo. Sendo assim, como o “valor” da mercadoria pode ser traduzido em quantidade? A questão aqui é tornar objetivo o sentido que habita a subjetividade: a utilidade das coisas.
O processo de divisão do trabalho tornou a sociedade mais complexa – dividiu funções e especializou modos de agir – fenômeno que amplia as possibilidades da vida coletiva, mas que cria “novas” necessidades. Essa leitura, quase pacífica e compartilhada por Marx e Simmel, percebe algo que antes não se impunha enquanto obrigação colocar-se agora como uma realidade inescapável: intercambiar os produtos do trabalho. De acordo com isso, a sociedade capitalista teria que forjar um recurso capaz de colocar em igualdade “objetiva” os diferentes “trabalhos” empreendidos na produção das distintas mercadorias. O dinheiro será o resumo desse desenvolvimento e o recurso mais poderoso do mundo do capital.
Na pretensão de um estudo científico Marx vai reconstruindo respostas caras à análise econômica. Ele afirma uma duplicidade de “valor” – herança hegeliana – quando a unidade elementar da exploração já encerra em si um princípio dialético: mercadorias são dotadas de valor-de-uso e valor-de-troca. O primeiro é da ordem da satisfação, liga-se a condições subjetivas do desejo e pode diferir essencialmente de um para outro. Já o segundo corresponde a imposição de “trocar” distintos valores-de-uso no interior da sociedade complexa, sendo iguais quando em quantidades iguais. A utilidade constrói um valor-de-uso estando associada ao consumo do que se produz e a suas qualidades materiais. Resta-nos saber como alcançamos um valor-de-troca.
O valor-de-uso só se realiza com a utilização ou o consumo. Os valores-de-uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma dela. Na forma da sociedade que vamos estudar, os valores-de-uso são, ao mesmo tempo, os veículos materiais do valor-de-troca. O valor-de-troca revela-se, de início, na relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies diferentes, na proporção em que se trocam, relação que muda constantemente no tempo e no espaço. Por isso, o valor-de-troca parece algo casual e puramente relativo, e, portanto, uma contradição em termos, um valor-de-troca inerente, imanente à mercadoria (...) As propriedades materiais só interessam pela utilidade que dão às mercadorias, por fazerem destas valores-de-uso. Põem-se de lado os valores-de-uso das mercadorias, quando se trata da relação de troca entre elas (...) Como valores-de-uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de qualidade diferente; como valores-de-troca, só podem diferir na quantidade, não contendo portanto nenhum átomo de valor-de-uso (MARX, 1968: 42-44).
Se as mercadorias são purificadas de utilidade num momento de troca, o que as valoriza? Para Marx, a dualidade de valor é sustentada por uma natureza também dual do trabalho empregado na produção: um de natureza concreta, e outro abstrato. Por um lado o trabalho concreto – encarregado do valor-de-uso – corresponde à atividade produtiva de um determinado tipo, que visa um fim determinado. Por outro, o trabalho abstrato – contabilizado no valor-de-troca – correspondendo a qualquer ato de trabalho, considerado separadamente de suas características específicas, simplesmente como dispêndio de força de trabalho humano no sentido fisiológico. O primeiro indispensável à existência do homem, o segundo socialmente necessário.
Assim, a mercadoria só assume a feição que a conceituamos quando possui uma dupla forma: a natural – utilidade – e a social – troca. Estudar a gênese da forma como as sociedades complexas realizam suas trocas requer o acompanhamento de como o valor de desenvolveu da sua forma mais simples até sua forma mais elevada: o dinheiro.
A mercadoria, dado seu duplo caráter, supõe uma sociedade determinada para qual ela foi produzida. Enquanto troca ela esconde a especificidade do concreto: essa cisão entre sujeito e objeto constitui o tema do fetichismo. Minha tarefa é descobrir o motor que vai tornando as relações sociais cada vez mais “opacas”, formando um processo de alienação numa economia que se tornou tão autônoma – criando uma linguagem própria – que se vê hoje distante do mundo que a sustenta. O fetichismo da mercadoria é a expressão exemplar de autonomia da criatura diante do criador.
O “segredo” escondido na mercadoria ao qual Marx se refere, criador de uma “opacidade” incômoda no mundo moderno, não está no valor-de-uso e nem ao menos na determinação de seu valor-de-troca. A questão é que ao quantificar relações e abolir a importância qualitativa do trabalho a mercadoria torna-se “misteriosa”, como que um resumo possível do homem.
A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho (...) Esse fetichismo do mundo das mercadorias decorre conforme demonstra a análise precedente, do caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias (...) A igualdade completa dos diferentes trabalhos só pode assentar numa abstração que põe de lado a desigualdade existente entre eles e os reduz ao seu caráter comum de dispêndio de força humana de trabalho, de trabalho humano abstrato (MARX, 1968: 81-82).
A conclusão do autor é negativa: objetivações – a abstração da utilidade em valo-de-troca, em dinheiro – se autonomizam adquirindo uma lógica própria que desafia o homem e mascara a desigualdade social. O tema do fetichismo tratado em Marx será uma manifestação particular do que Simmel entenderá como o fenômeno geral ocasionado pela divisão do trabalho, motivo de tensão do mundo ocidental: a diferenciação da cultura subjetiva e objetiva (SOUZA, 2005).
O dinheiro, como resultado do processo descrito por Marx, será o sujeito de um mecanismo “trágico” de objetivação da vida, redutor da qualidade da cultura a um equivalente em quantidade que dispensa formas tradicionais de solidariedade e promove uma sensação de liberdade peculiar ao mundo moderno (SIMMEL, 2005a). Movimento que faz das personalidades individuais “coisas” objetivas significadas exemplarmente num instante de troca: homens que agora não negociam o que são, mas resolvem o que querem a partir do meio mais eficaz de obterem: num ato de troca cancela-se o subjetivo tornando-o supra-individual.
Nessa função, o dinheiro confere, por um lado, um caráter impessoal, anteriormente desconhecido, a toda atividade econômica, por outro lado, aumenta, proporcionalmente, a autonomia e a independência da pessoa (SIMMEL, 2005a: 24).
O aumento da divisão do trabalho e a conseqüente especialização fazem com que a economia ganhe um lugar privilegiado em todos os espaços da vida. A “alienação” que Marx identifica no âmbito da produção será estendida por Simmel à esfera da circulação: uma vida que se expressa em “formas” que ganham autonomia e se sobrepõem a ela. Um desejo que tem sua intensidade medida pelo dinheiro.
No transcurso da troca o valor que serve de “meio” foi traduzido num equivalente em dinheiro. O fato de que indivíduos ganham identidades variadas no interior da sociedade especializada faz com que a finalidade da mercadoria produzida seja a aquisição de outras mercadorias de real interesse. A cadeia que liga os sujeitos – conceituação simmeliana de cultura (postagem sobre Cultura e Civilização em Simmel e Durkheim). – se amplia e a satisfação da necessidade se distancia no horizonte da circulação: objetos que perdem seu valor-de-uso, numa terminologia marxista, tendo apenas um valor-de-troca que orbita de forma “fantasmagórica” no vazio.
Na medida em que o homem torna-se mais “cultivado” sua cadeia teleológica se amplia afastando a satisfação imediata (WAIZBORT, 2000). Isso o obriga a se relacionar com os demais no intuito de satisfazer suas necessidades agora mediadas.
Quem lamente o efeito separador e alienador do intercâmbio monetário não deve esquecer o seguinte: o dinheiro gera uma ligação extremamente forte entre os membros de um setor econômico pela necessidade de trocar dinheiro para obter valores definidos e concretos. E precisamente porque o dinheiro não pode ser consumido imediatamente, ele aponta para outros indivíduos, dos quais se pode exigir o que se quer consumir (...) Na medida em que o dinheiro possibilita a divisão do trabalho, ele encadeia os homens de maneira irresistível, pois agora cada um trabalha pelo outro. Somente o trabalho de todos gera a união econômica abrangente que completa os desempenhos unilaterais do indivíduo (SIMMEL, 2005a: 26-27).
Há um aspecto intrigante na divisão do trabalho assim descrita: um processo que hora une, hora separa. Une porque os homens agora ligam-se em laços de dependência mutua. Separa, pois o sentido do que são perde-se nos meios procurados para se realizarem colocando-os no anonimato. É a falsa liberdade escondida na ampliação de condições enaltecida por Durkheim (discussão sobre Durkheim abaixo). O fato de que no mundo moderno os homens – agora livres de solidariedades tradicionais – gozam de liberdade de escolha atribui mais valor àqueles que possuem o meio de entrada do “jogo” de trocas: o dinheiro. Cria-se uma cultura dos meios, perde-se a noção dos fins.
Não se percebe que o dinheiro pe meramente um meio para obter outros bens – pensa-se nele como se fosse um bem autônomo, quando toda sua significação advém do fato de ser um elemento numa seqüência que leva e um fim e a um consumo definidos (...) O dinheiro, anteriormente um puro meio e uma premonição, torna-se, intimamente, alvo final (...) O dinheiro é, propriamente, nada mais que uma ponte aos valores definitivos, e não podemos morar numa ponte (SIMMEL, 2005a: 33).
A modernidade marca o protagonismo das coisas em detrimento dos sujeitos. Uma vida que passa a ser regida por critérios exteriores a ela: como o meio impessoal para satisfazer a necessidade não tem “cor”, é vazio de personalidade, o estilo de vida moderno deve primar pelo cálculo no sentido de ampliar suas chances de ser feliz (WAIZBORT, 2000). O homem da intelectualidade, da racionalidade, está situado numa posição favorável em relação ao homem que se move pelo sentimento: é a perda do elemento espontâneo da vida. Aqui uma liberdade que entra em xeque: viver é me adaptar aos demais.
Diogo Tourino de Sousa

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Panteísmo estético em Georg Simmel

Como informa Leopoldo Waizbort em “As aventuras de Georg Simmel”, Simmel nasceu em Berlim e lá viveu até os 56 anos, tendo acompanhado o seu processo de transformação de cidade-residência em uma moderna aglomeração urbana . Segundo Waizbort (2000), a teoria do moderno elaborada por Simmel seria fruto de seu enfrentamento com a cidade em que vivia; o material que teria atiçado suas reflexões é coletado de suas experiências em Berlim. Ao mesmo tempo, porém, sua análise não se restringe a sua posição em Berlim por volta do século XIX. Como assinala David Frisby, o cedo interesse de Simmel na interação social e, já no início da década de 1890, a definição da sociologia como estudo das formas de sociação, foram combinadas com seu interesse original nos estados emocionais e psicológicos derivados dos estudos de Völkerpsychologie. Assim, o processo de transformação radical pelo qual a cidade de Simmel passa no período de 1858 a 1914, aliado ao olhar apurado do autor, teria sido o “elemento central na configuração da sua teoria do moderno, filosofia da cultura e análise do presente, em suma, para a própria idéia de uma cultura filosófica” (Waizbort, 2002: 315). Nesse sentido, o diagnóstico que Simmel faz de seu tempo está intrinsecamente relacionado aos seus métodos e objetos de análise, numa determinação recíproca. Algo que assemelha-se ao proceder de Benjamin.
A idéia de estilo de vida moderno, que tem como lugar histórico a metrópole, serve à Simmel como categoria capaz de convergir uma caracterização e uma teoria sobre o moderno. A modernidade como “eterno presente”, pensada, portanto, como um tempo de intensificação da vida, tanto nervosa quanto material, evoca modos de experiência e de análise condizentes com seu caráter transitório. Como assinala Frisby (2002), a modernidade consiste num modo particular de experiência do mundo, o qual não se reduz às nossas respostas interiores, mas que é também incorporado na nossa vida interior. O mundo externo se torna parte de nosso mundo interior e, por sua vez, o elemento substantivo do mundo externo é reduzido a um fluxo incessante. Constitui tarefa da alma moderna incorporar o mundo exterior e, paradoxa e simultaneamente, submeter-se às suas leis, como assinala Simmel no texto sobre Rodin . A captura e vivência de tal realidade social fragmentária, que tem sido reduzida à experiência individual interior, necessita também, pois, de um conhecimento focado no fragmento.
Como argumenta Waizbort, no processo histórico que nos teria trazido ao moderno, Simmel identifica a presença de uma ênfase em conteúdos específicos e o rebaixamento de domínios do mundo e da vida considerados indignos de profundidade metafísica. Ele propõe então uma virada diante de tal esgotamento da filosofia tradicional, apresentando como alternativa uma cultura filosófica, cuja concepção de mundo seja mais plural, consciente da diversidade de perspectivas e da multiplicidade de objetos passíveis de interpretação. Esta virada requer a inversão dos procedimentos do conhecimento, alertando para a possibilidade de se chegar à profundidade, ao essencial e significativo, pelo que está na superfície, pelo que é fugaz e efêmero. A saída encontrada por ele é a de dirigir-se a novos objetos – concretos e inusitados –, a fenômenos singulares, segmentos do real que seriam reabilitados.
A mobilidade, marca da modernidade e do esforço simmeliano, em contraposição à rigidez, direcionalidade e unicidade do espírito pré-moderno, asseguraria a todo fragmento do real que anseia ser levado à camada filosófica profunda a possibilidade de tornar-se objeto.
Nesse sentido é que pode-se dizer que o objeto em Simmel é visto como símbolo, e tal posicionamento frente ao mundo e à vida é de extração estética. Essas duas proposições caracterizariam o que Simmel denomina panteísmo estético: do fragmento à totalidade, de um ponto ao todo, pois que “o todo vive na parte”. O conhecimento através do símbolo, ou o símbolo como procedimento do conhecimento, emerge da constatação de que não é possível conhecer o divino a não ser a partir do sensível. O panteísmo estético realizaria uma estetização da realidade, o que significa aqui contemplar o real como uma obra de arte. A cada instante, a tarefa do investigador é estabelecer as relações entre o microcosmo e o macrocosmo. O mundo de Simmel torna-se um mundo de relações; tudo está em relação com tudo e esta é exatamente a idéia do panteísmo: deus está plenamente em tudo (Waizbort, 2000: 83-84).
A totalidade a que Simmel se refere, porém, não é nunca acabada, fixa – pois que em Simmel não há fim, meta, e sim processo, escavação. Ela apenas reluz por um instante a um nexo de relações que o sujeito elabora. O efêmero é visto como se fosse eterno, ou, Simmel postula uma espécie de congelamento do que é momentâneo para considerá-lo em sua intemporalidade. Como observa Frisby, a justificativa para partir do fragmento social está nisso: o fragmento fortuito não é meramente fragmento; o “´único” contem o “típico”, o fragmento fugaz é a “essência”.
O ensaio é a ferramenta de tal cultura filosófica: instrumento móvel e espontâneo, ocupado com o caminho que percorre, e não com as respostas a que deva chegar. Acusado de “superficial” por sua ausência de sistematização, objetividade e conclusões, ele é a forma da virada simmeliana , pois que na sua superficialidade radica a profundidade. O que se liga ao panteísmo estético simmeliano de “ver no individual o universal” .
Simmel propõe tais novas posturas diante da análise das formas de interação social – perspectivismo, panteísmo estético, relativismo, ensaísmo – por diagnosticar no presente o que ele chama de tragédia da cultura.
Isabella Mendes Freitas
Referências Bibliográficas:
FRISBY, David. Fragments of modernity. Cambridge: First MIT Press edition, 2002.
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O fenômeno urbano. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
SOUZA, Jessé, ÖELZE, Berthold (orgs.). Simmel e a modernidade. Brasília: Editora da UNB, 1998.
WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.

Alegoria e modernidade em Benjamin

Assim como Simmel, mas alguns anos mais tarde, Walter Benjamin também volta seu estudo para as mudanças radicais pelas quais passa a cidade na modernidade, mais especificamente, na Paris dos séculos XIX e XX, o que advém também de suas próprias experiências como observador de um mundo percebido como em ruínas. Ainda, devido à própria dificuldade em interpretar o esfacelamento da realidade social é que Benjamin irá buscar no passado um outro procedimento investigativo e expressivo, na tentativa de reintegrar em uma unidade perdida os elementos que caracterizam o seu presente. Assim, sua produção intelectual é, como em Simmel, produto do diagnóstico que ele faz do seu tempo e do material que recolhe de sua experiência da modernidade.
Como assinala Frisby (2002), o projeto de Benjamin em retroceder a uma pré-história da modernidade deve ser entendido como uma tentativa de recapturar a experiência social perdida no processo da modernidade. Para Benjamin, haveria a necessidade de uma teoria materialista da experiência, a qual repousa na distinção entre experiência individual vivida (Erlebnisse) e experiência concreta (Erfahrung) .
Benjamin percebe o contexto em que vive como um momento de pobreza e emudecimento do homem diante de um mundo decadente em significação. As mudanças características da sociedade industrial burguesa teriam incapacitado o homem contemporâneo de dar sentido à multiplicidade de objetos que o rodeiam e, portanto, à sua própria existência. A industrialização acelerada, os processos de urbanização, o rebaixamento das coisas e dos homens ao estatuto de mercadorias, o predomínio da técnica e a conseqüente perda da aura da obra de arte devido à sua ilimitada reprodução em série, a homogeneização e feitichização dos objetos e dos estilos de vida, a perda do poder nomeador da palavra transformada em mero meio de comunicação, tudo isso levaria o homem contemporâneo de Benjamin a um estado de “desenraizamento”, de incapacidade de articular suas experiências com o concreto e, portanto, de narrá-las.
Em “Origem do drama barroco alemão”, de 1925, Benjamin propõe que tal situação vivida pelo homem contemporâneo assemelha-se à da experiência do homem barroco, o qual também esteve diante de um mundo percebido como em dissolução. Ambos atuariam em um cenário permeado de cadáveres, esqueletos, ou seja, repleto de objetos esvaziados de significação, encontrando-se, dessa maneira, sujeitos à melancolia, doença da alma insatisfeita pelo excesso de materialidade a que está condenada, como define Zahira Cordeiro (1992).
A alegoria e a história enquanto cesura, correlata a ela e diversa da concepção de história enquanto progresso, permitem ao crítico, ao poeta, e ao sujeito do conhecimento histórico de um modo geral, “salvar as coisas” que são partilhadas na modernidade com horror e prazer, por entre os detritos dessa experiência histórica, e destituída de alma, do homem moderno, a experiência vivida do choque, como descreve Maria João Cantinho. Segundo essa autora, Benjamin investiga a modernidade com um misto de horror e encantamento: horror por reconhecer no moderno formas degeneradas e decadentes (alegorizadas pela prostituição, pela flânerie, pelo jogo, pelo trapeiro, pelo fetichismo da mercadoria, pela moda...); encantamento pelo que se constrói no apelo à compreensão da decadência, da morte, da ruína. Poderíamos afirmar que o fascínio de Benjamin parece proceder da necessidade de compreender, submergindo no seu objeto, procurando determinar a lei oculta de um procedimento estético que teve, na sua época, o seu clímax e que foi o procedimento alegórico, como afirma Cantinho.
Assim, alegoria e modernidade são unidas, em Benjamin, “pela concepção barroca da história, unidos igualmente por um saber que não é capaz de encontrar a sua saciedade, auto-absorvendo-se nessa remissão infinita que não conhece o seu repouso” . Benjamin percorre seu tempo como um alegorista, reunindo seus cacos, trabalhando com a diversidade de temas “menores” oferecendo-lhes a redenção pela significação. Diz armazém para tratar de moda, do “novo”; diz panorama para tratar das novas formas de percepção, expressão e sentimento da vida; diz fotografia e cinema para dizer da destruição da aura e da substituição de valores artísticos na modernidade (de culto para o de exposição); diz Nikolai Leskov para dizer da perda da faculdade de intercambiar experiências; diz lirismo e Charles Baudelaire para falar da possibilidade de redenção (alegórica, profana, revolucionária) e, em última análise, de Walter Benjamin.
E é assim, misturando atitudes do trapeiro, do colecionador, do flâneur e do cismativo, em suma, é como alegorista, que o sujeito do conhecimento histórico pode lidar com a “experiência” moderna, marcada pelo choque, pela perda da experiência e pelo declínio da aura, os quais encontram-se intrinsecamente ligados e são colocados sob o pano de fundo do tédio e da melancolia. Cantinho explica que
“dizer perda de experiência significa falar da experiência do choque [Chockerlebnis], visto que toda a experiência do homem do século XIX nos aparece à luz dessa impossibilidade de uma experiência autêntica [Erfahrung]”. A experiência do choque nasce e desenvolve-se, par a par com a consciência do declínio da aura [...], declínio que faz nascer um mundo ilusioriamente transfigurado, permitam-nos a expressão, “fantasmagorizado”, mediante a necessidade de tornar suportável a história arruinada, num mundo marcado pelo fétiche da mercadoria”. (CANTINHO, 2003)
A noção de fantasmagoria em Benjamin teria, segundo Rolf-Peter Janz, duas dimensões: uma negativa, referente à sua função de transfiguração falseadora, patente no olhar do flâneur e do jogador; e uma positiva, referente à possibilidade de congregar em si as imagens-desejo da coletividade, vislumbradas na figura do colecionador, o qual procura libertar a mercadoria de sua utilidade mercantil. É este aspecto positivo que, segundo Cantinho, atenua a experiência do choque, mas que desaparece no olhar do flâneur, pois este não vê as coisas tal como elas são, mas sim como convém a esse olhar, nas palavras de Janz por ela citado.
Assim, a experiência moderna é marcada pela embriaguez proporcionada pelos efeitos fantasmagóricos (enganadores) de sua arquitetura, da técnica, das galerias, da mercadoria, que levam a um estado de “sonolência coletiva”.
Porém, percorrendo a cidade sob a aparência deste olhar desatento, o flâneur é um homem “cuja volúpia reside na decifração dos sinais e das imagens: algo que pode ser revelado por uma palavra deixada ao acaso, uma expressão capaz de fascinar o olhar de um pintor, um ruído que espera o ouvido de um músico atento” . Dessa forma, o olhar do flâneur esconderia a mais profunda agitação interior. O que permitiria a mediação entre estas duas características da flânerie (experiência do choque, da fantasmagoria e da sonolência, de um lado, e, de outro, da produção de significados), é, segundo Cantinho, a meditação melancólica, condição essencial da produção alegórica. O flâneur não direciona às coisas um olhar ingênuo e iludido, mas sarcástico e gélido, um olhar barroco, “o qual inflecte sobre si mesmo, mediante o acto da rememoração e que constrói imagens poéticas”. Está na ordem do saber reflexivo do cismativo, este que é feito da mesma “matéria” que o alegórico:
“A rememoração do cismativo dispõe da massa desordenada do saber morto. Para ele, o saber humano é fragmentário num sentido particularmente pregnante: ele reúne (...) e contrói um puzzle. Uma época que é inimiga da meditação, conservou o gesto no puzzle. Este gesto é, em particular, o gesto do alegorista que toma aqui ou ali um pedaço no monte confuso que o seu saber põe à disposição, coloca esse pedaço ao lado de um outro e tenta fazê-los conjugar: tal significação com tal imagem e tal imagem com tal significação.” (BENJAMIN apud CANTINHO, 2003)
Benjamin entende que é assim que age Baudelaire, buscando estabelecer a mediação entre a imagem e a significação, no interior da rememoração poética. Crítico e poeta “na busca de redimir as coisas, num gesto alegórico, juntando à significação uma imagem e vice-versa” . Essa seria a visão alegórica, saturnina e melancólica como refere Benjamin, visão esta encontrada no olhar barroco e na sua concepção arruinada da natureza e da história. Este, portanto, seria o papel mediador da alegoria na investigação e na própria vivência da experiência moderna.
Isabella Mendes Freitas
Referências bibliográficas:
BENJAMIN, Walter.Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas. São Paulo, Brasiliense, 1985.
_________.Magia e Técnica, Arte e Política, Obras escolhidas. São Paulo, Brasiliense. 1985.
_________.Origem do drama Barroco alemão. Tradução, apresentação e notas: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1984.
_________.Paris, capital do século XIX, in: BENJAMIN, Walter. Sociologia. São Paulo, Ática, 1985.
CANTINHO, Maria João. Modernidade e alegoria em Walter Benjamin. Espetáculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid, ano VIII, n.24, 2003. Disponível em:
http://www.ucm.es/info/especulo/numero24/benjamin.html.
CORDEIRO, Zahira Souki. A alegoria como conceito: uma leitura benjaminiana do barroco. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1992.
HELENA, Lucia. Um sultão no reino das coisas. Alea, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2003.

A tragédia da cultura e o problema do homem moderno

Em “O conceito e a tragédia da cultura”, de 1911, Simmel assinala que o espírito produz formações diversas (como a arte, os costumes, a ciência, a religião, o direito, a técnica e as normas sociais) que passam a ter uma autonomia própria; o sujeito passa a confrontar-se com essas formações e, nestas, o espírito converte-se em objeto. Haveria uma oposição entre a vida subjetiva, que é incessante mas temporalmente finita, e seus conteúdos, que, uma vez criados, se cristalizam em formas imóveis, mas válidas intemporalmente. Em “O conflito na cultura moderna”, de 1918, Simmel sugere que as formas seriam estruturas para a vida criativa, a qual, entretanto, as transcenderia. Elas adquiririam identidades fixas e uma lógica própria, e esta rigidez inevitavelmente as colocaria distantes da dinâmica espiritual que as criou e as tornou independentes.
O conceito de cultura estaria imbricado em meio a esse dualismo entre espírito e forma, no qual o espírito se converte em formas que se autonomizam e que, no entanto, o sujeito deve abarcar em si mesmo para que realize a própria idéia de cultura. O processo da cultura estaria inscrito na dialética de sujeito e objeto, que marcam pólos opostos e insolúveis. Por esta razão, as pontes de que fala Simmel seriam provisórias e inconclusas, relações que se estabelecem entre sujeito e objeto. O processo de cultura é a fusão momentânea, subjetivação do que é objeto, objetivação do que é sujeito; a cultura é concebida por Simmel como o ponto de cruzamento de sujeito e objeto, síntese única entre espírito subjetivo e espírito objetivo – síntese que não é acabada, passiva e unívoca. Na medida em que os dois pólos se encontram, o sujeito incorpora o objeto e torna-se assim um sujeito mais rico, no sentido de que sua subjetividade é enriquecida.
Como pode ser percebido, tal processo abarca um caráter trágico, intrinsecamente presente no conflito entre espírito e objetos, entre vida e formas. No moderno, em especial, o objeto sairia de sua original posição mediadora, ganhando autonomia e rompendo com a circularidade do processo cultural. Na medida em que os objetos de autonomizam, eles se isolam dos sujeitos que os objetivaram, até um ponto em que eles nada mais dizem sobre estes. Os objetos deixam de ser meio e se tornam o fim daquela corrente teleológica, bloqueando o processo cultural. Aqui se instaura a tragédia da cultura. Predomina, na época da cultura trágica , aquela “forma intermediária da objetividade”, em que os objetos seguem suas lógicas próprias, independentes do processo que os criou (eles são espírito objetivado) e independentes do fim que lhes era atribuído (eles eram meios dos sujeitos). Por isso Simmel fala da “fatalidade dos elementos culturais”, pois que a lógica própria do desenvolvimento dos objetos não afina necessariamente (e historicamente) com os sujeitos. Em resumo, “a tragédia da cultura é essa transformação descontrolada e desintegradora dos meios em fins: o homem, o verdadeiro fim, torna-se meio; o objeto, o verdadeiro meio, um fim em si mesmo, ao qual os homens acabam por se submeter”.
Com isto, Simmel ampliaria a um registro universal o fetichismo da mercadoria, ao afirmar que a “situação problemática típica do homem moderno” é a “preponderância do objeto sobre o sujeito”. A objetividade enquanto forma possui uma capacidade de realização ilimitada, e tal característica afeta os sujeitos naquilo que eles têm de mais profundo, sua subjetividade, que se vê dominada pela forma objetual, ao invés de dominá-la segundo seu desejo. Portanto, o caráter fetichista que Marx atribui aos objetos econômicos seria, em Simmel, apenas um caso especificamente modificado deste destino universal de nossos conteúdos culturais .
O empenho de Simmel dirige-se à investigação das raízes dessa alienação (dos objetos em relação aos sujeitos) na modernidade, do rompimento da corrente, da transformação dos meios em fins. A origem de tal situação estaria na divisão do trabalho, causa da superação da cultura subjetiva pela objetiva. A partir da percepção de Simmel sobre as crescentes diferenciações operadas na modernidade, inclusive na esfera do trabalho, esta se apresenta como um crescente processo de distanciamento (alongamento da cadeia dos meios), que também consiste em um distanciamento entre os sujeitos, como veremos na análise sobre as grandes cidades.
Isabella Mendes Freitas
Referências bibliográficas:

SIMMEL, Georg. Subjective culture. In: Georg Simmel on individuality and social forms. Edited by Donald N. Levine. Chicago: The University of Chicago Press, 1971.
______. Filosofía del Dinero. Traducción e introducción de Ramón García Cotarelo. Granada, Editorial Comares, S.L., 2003.
SOUZA, Jessé, ÖELZE, Berthold (orgs.). Simmel e a modernidade. Brasília: Editora da UNB, 1998.
WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.

Simmel e Benjamin: aproximações

Há diversas entradas possíveis de aproximação entre Georg Simmel e Walter Benjamin. David Frisby, por exemplo, em Fragments of Modernity, une os dois autores à Siegfried Kracauer, aproximando-os em termos das perspectivas teóricas comuns no estudo da modernidade (a modernité de Baudelaire, a análise do capitalismo com a reificação e fetichismo em Marx, a idéia do novo como eterno retorno e o declínio do homem cultivado em Nietzsche), e de suas metodologias incomuns, que os colocam na posição de outsiders da academia. Além disso, a localização da análise destes autores no nível dos modos de experimentação da realidade tem suas origens na natureza distintiva de seus estudos. O objeto de tais análises, ou seja, o moderno, constitui para Simmel e Benjamin, objeto não fixado, não seguro, determinado pelo novo modo de experienciar (e não só “olhar”) a realidade social emergente.

Estes dois pensadores alemães, pois, se dedicaram à caracterização da modernidade em contextos distintos do nosso, mas, contando com apurada sensibilidade e evocando ampla liberdade do pensamento, conferem à modernidade expressão dinâmica e contribuem, aqui e agora, para a análise da articulação das esferas objetiva e subjetiva da vida urbana através de uma percepção estética das manifestações da vida, seja pela sociologia estetizante simmeliana, seja pela alegoria benjaminiana.

Da superfície à profundidade, do fragmento ao todo, num tatear sobre o jogo incessante da interação, da reciprocidade, da formação de constelações. A modernidade apresentada como trágica por Simmel e decaída em Benjamin, exige do pesquisador, do sujeito do conhecimento, uma atitude especial, sensível, que articule os fragmentos paradoxais da existência, seus cacos, em uma nova ordem, totalidade orgânica, ruína, dotada de significação. Uma articulação não aniquiladora do sujeito, o qual é o construtor das pontes (inconclusas), produtor das relações e dos desvios evocados pelos dois autores; não aniquiladora também do objeto, do fragmento, nem da aparência, os quais são realçados numa postura estética diante da vida.

Quantos aos modos de expressão, tanto Simmel quanto Benjamin costuram suas idéias de maneira bastante inusitada e criativa quando confrontados com os procedimentos científicos “tradicionais” postulados pela academia. A profusão de ensaios produzida por Simmel e o conjunto dos fragmentos textuais deixados por Benjamin ensinam que é possível investigar a realidade social urbana na sua superfície, na fugacidade de seus acontecimentos, na complexidade e transitoriedade de seu movimento, e apresentar tal investigação em sua fragmentaridade. Simmel e Benjamin sugerem, pois, uma compreensão dos fenômenos que não ignore, de um lado, a multiplicidade de faces dos objetos interpretados e, de outro, o perspectivismo e o subjetivismo de tal interpretação. Esta combinação dá origem a estudos cuja ênfase recai menos nas conclusões obtidas do que no caminho percorrido. Os objetos ganham outra significação, tendo restituída sua “profundidade metafísica” . O objeto possui várias faces e nos conduzem sempre a outros objetos, outros meios da série teleológica, o que implica necessariamente em desvios e digressões.

Isabella Mendes Freitas

Referências bibliográficas:

FRISBY, David. Fragments of modernity. Cambridge: First MIT Press edition, 2002.
MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Tradução de Alberto Christophe Migueis Stuckenbruck. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Cultura e Civilizaçlão em Simmel e Durkheim

O homem das épocas econômicas anteriores encontrava-se na dependência de poucos outros homens, mas estes outros eram individualmente bem definidos e impermutáveis, enquanto hoje em dia dependemos muito mais de fornecedores, mas podemos permutá-los ao nosso bel-prazer.
Georg Simmel – O dinheiro na cultura moderna.
O homem de bem de outrora já não é, para nós, senão um diletante, e recusamos ao diletantismo todo e qualquer valor moral; vemos, antes, a perfeição no homem competente que procura, não ser completo, mas produzir, que tem uma tarefa delimitada e que a ela se dedica, que faz seu serviço, traça seu caminho.
Émile Durkheim – Da divisão do trabalho social.
O século XIX faz maior em extensão um problema próprio do mundo moderno – que tem, inicialmente, as sociedades européias como local de existência e reflexão – patente na inquietação e no fazer sociológico, mesmo não gozando de concordância, de Simmel e Durkheim: o que a industrialização ensejou nas sociedades contemporâneas, desde o aparente enfraquecimento de princípios morais presentes em organizações sociais passadas, até o desenvolvimento de novas formas de sociabilidade vinculadas a necessidades típicas do mundo industrial.
Problema que pode ser facilmente traduzido numa temática quase canônica da reflexão social – realizada por economistas, psicólogos, moralistas na denominação de Durkheim, metafísicos e mesmo sociólogos num exercício ainda recente de reivindicação estatutária – que encontra suposições diversas, oriundas de mundos diversos: qual o significado do fenômeno da divisão do trabalho pra as organizações sociais modernas? Fato é que no mundo do século XIX a divisão do trabalho se apresentava como um fenômeno inerente ao capitalismo em desenvolvimento, mas com conseqüências não tão evidentes. Simmel e Durkheim protagonizam bem, em encontros e desencontros, a opacidade relativa aos desdobramentos deste processo.
A ausência de concordância aqui mencionada reside em opções metodológicas e projeções de futuro hora distintas, hora semelhantes. De um lado, a Alemanha pessimista de Simmel, que tenta captar “espécies da eternidade” por meio do terminantemente fugidio, passageiro, exercício que culmina numa metafísica do mundo moderno e no diagnóstico último da “perda de sentido”. De outro, a França otimista de Durkheim, que vê novas formas de solidariedade surgirem no mundo industrial rompendo com laços antigos, possibilitando a ampliação das necessidades e o caminho “possível” da conseqüente ampliação das satisfações. Em ambos um incômodo comum: a divisão do trabalho que separa e une os indivíduos produzindo novas e desafiadoras formas de sociabilidade, produzindo um “novo” homem anônimo ou bem definido.
A unidade temática apontada tem um itinerário sugerido: os conceitos de cultura e civilização. Em Simmel a ambigüidade do “dentro” e “fora” – subjetivo e objetivo – dando sentido a cultura; em Durkheim a unicidade exterior – fatos morais – compondo o aparelho que testemunha acréscimos de civilização e o decorrente florescimento de patologias. Afirmar uma mesma perspectiva “coletivista”, na abordagem de um tema comum, não pode esconder a particularidade no que concerne, principalmente, a conclusão.
O ponto de Simmel é claro: a divisão do trabalho cresce, embalada por uma vida “sem sentido”, e fragmenta de forma “trágica” a cultura em objetiva e subjetiva. Afirmação essa que cobra o entendimento de conceitos centrais na construção simmeliana, ancorados numa espécie de “filosofia da cultura” associada a uma “teoria do moderno” e a um “diagnóstico do presente” (WAIZBORT, 2000). A abordagem tópica da obra do autor habita uma sistematização artificial, sem possibilidades analíticas apartadas. Isso porque ao classificar a fragmentação da cultura como trágica, Simmel coloca em evidência o percurso de um processo que tem sua origem identificada no próprio ator que será posteriormente o alvo de seus desdobramentos: o homem. A “tragédia da cultura” indica não um destino adverso, mas sim um agente que engendra sua própria submissão, a forças hostis que ele criou (SOUZA, 2005).
O ponto de partida é o enfrentamento do homem – sujeito – com uma natureza a ser moldada – objeto –, que nos distingue, antes, dos animais. Simmel fala de um “espírito” que se objetiva e autonomiza, que mesmo sendo finito produz formas duráveis em movimentos trágicos de marcação da forma como ele se constitui.
O homem não se ordena à realidade natural do mundo como animal, antes ele se arranca dela e se contrapõe a ela, exigindo, violentando e sendo violentado – com este primeiro grande dualismo, inicia-se o processo infindável entre sujeito e objeto (...) Enquanto espírito intimamente ligado ao espírito, o sujeito vivencia incontáveis tragédias nesta profunda contradição de forma entre a vida subjetiva infatigável, mas temporalmente finita, e seus conteúdos, que, uma vez criados, são estáticos, mas têm uma validade atemporal (SIMMEL, 2005b: 77).
O duelo em questão é o próprio processo da cultura que se dá no dualismo imbricado das esferas subjetiva e objetiva do sujeito: um mundo exterior que deve ser moldado segundo os ditames da subjetividade; uma subjetividade que se constrói a partir de dados objetivos tomados da realidade exterior, que curiosamente correspondem a subjetividades outrora cristalizadas. A dialética simmeliana prescinde de síntese: a vida espiritual induz a forma material partindo, ao mesmo tempo, da materialidade que ela irá formar.
Imaginar uma natureza moldada segundo a subjetividade humana comporta certo grau de aceitação. No entanto, a atenção de Simmel volta-se para a formação dessa subjetividade fluida, que também não pode ser pensada como isolada. Isso porque, mesmo a potencialidade intrínseca aos espíritos requer cultivo para se realizar. O autor fala de acréscimos que desenvolvem o que já existe dentro de nós: um sujeito que vai se aperfeiçoando no contato com o mundo que está a sua volta.
Recusamos o conceito de cultura quando a perfeição não é sentida como desenvolvimento próprio do centro da alma; mas ele tampouco é corretamente aplicável quando essa perfeição comparece como um desenvolvimento próprio que prescinde de quaisquer meios ou estações que lhe sejam objetivos e exteriores (Ibidem, 80).
A percepção apartada da realidade objetiva – mesmo sendo ela subjetividade autônoma – é o que Simmel entende por civilização, certamente distante do conceito de cultura por ele formulado como sendo a síntese dessas esferas. Essa distinção conceitual está na raiz do diagnóstico de um mundo “sem sentido”: valores que são ignorados enaltecendo uma objetividade em detrimento da subjetividade enriquecida que é o resultado visado pela síntese da cultura. Raciocínio que passa pela quebra de uma sugerida circularidade “natural”, compondo o conceito de “tragédia” anteriormente definido.
Simmel nos fala de um sujeito que enriquece sua subjetividade no relacionamento com os objetos formados no plano da cultura. Estes são engendrados por outras subjetividades numa espécie de “corrente” que vai de sujeitos a sujeitos passando por objetos, sempre tendo em vista a característica de subjetividades fluidas e objetividades estáticas. Nesse sentido, o processo de formação de cultura se dá na circularidade sujeito-objeto, objeto-sujeito, sendo o último distinto do inicial (WAIZBORT, 2000).
O momento de quebra dessa circularidade se dá quando a subjetividade perde sua fluidez ao se amarrar ao objeto, ou quando o objeto é jogado para fora do “fluxo da vida” ganhando autonomia. Algo que antes ocupava uma posição mediadora no enriquecimento do espírito rompe a “corrente” que liga os sujeitos por meio dos objetos. O dinheiro será o exemplo maior desse acontecimento: meio que se transforma em fim bloqueando o processo da cultura.
A obra exterior ou imaterial na qual a vida interior se materializou é percebida como um valor especial; a vida, fluindo para dentro dela, pode se perder num beco sem saída ou a corrente da vida pode seguir seu fluxo, deixando para trás esta criação lançada fora deste fluxo (...) Nas objetivações do espírito, sobressai uma acentuação de valor que, com efeito, nasce na consciência subjetiva, mas que vai além dela (SIMMEL, 2005b: 82).
Ao ganhar autonomia os objetos colocam em risco o sentido da vida, justo porque os sentidos objetivados dependem de subjetividades que se consolidaram, como, por exemplo, um nascer do sol que precisa ser imortalizado na arte. Os valores da cultura são produzidos em séries objetivas que, no mundo moderno, não mais conseguem enxergar sua finalidade quando a produção afasta-se do produtor, como necessidade e resposta o processo de divisão do trabalho. Perde-se a noção de todo, fazendo das partes isoladas entes objetivos autônomos (WAIZBORT, 2000).
Simmel entende a divisão do trabalho como um alongamento na cadeia de produção de sentido que liga um número cada vez maior de indivíduos, ao mesmo tempo em que os afasta. Indivíduos estes que são, dentro da lógica do processo, eles próprios objetivados, dada a necessidade de produção criada dentro da própria produção. O “novo” homem que o mundo industrial produz, e quanto a isso Durkheim não fará ressalvas, é o especialista. No entanto, Simmel vê o especialista num processo que desenvolve suas partes (os elos da cadeia) sem desenvolver o todo (a cultura). A tragédia de um homem que se perde ao se realizar.
A valoração de quem se preocupa somente com a salvação da alma, com o ideal da força pessoal ou com o desenvolvimento individual interior, inatingível a qualquer momento exterior, carece justamente de um dos fatores integrantes da cultura, ao passo que o outro falta àquelas pessoas que só se preocupam com a pura perfeição objetiva de nossas obras. O caso extremo do primeiro tipo é o devoto, do outro é o especialista enclausurado no fanatismo da sua área de trabalho ou pesquisa (SIMMEL, 2005b: p. 89).
O diagnóstico simmeliano não poderia ser outro: cria-se uma cultura dos meios incapaz de enxergar no horizonte os fins. Isso fará com que a vida seja tomada apenas pela exterioridade que a compõe. Homens que se separam no anonimato e unem-se por dependência mútua. Homens que tiveram os laços que os ligavam dissolvidos na “cultura do dinheiro” (dos meios) a ponto de se tornarem facilmente permutáveis com a utilização do meio ideal e fim último da ação no mundo moderno: o dinheiro. Aqui, precisamente, Simmel percebe uma negatividade no processo de divisão do trabalho que marca seu afastamento com relação do modo como Durkheim o entenderá.
Certamente o dinheiro dispensa formas de solidariedade tradicional ao quantificar relações através de um meio de troca purificado de subjetividade. A irrelevância das corporações medievais no mundo industrial – que primavam pela manutenção de um relacionamento mais significativo do que o mero contato econômico – é uma prova disso (SOUZA, 2005). Durkheim chama a atenção no extenso prefácio à segunda edição da sua “Divisão do Trabalho Social”, publicada em 1902, sobre a importância de tais corporações, mesmo no mundo industrial que as fez desimportantes, na recuperação de princípios de moral inexistentes no mundo da economia.
Diferentemente de Simmel, não fazendo caso de qualquer metafísica e tematizando a divisão do trabalho por meio da noção de civilização, Durkheim vem com sua ciência apontar possíveis “correções” para as patologias factualmente presentes na sociedade industrial: mesmo que a vida econômica esteja inevitavelmente ligada a um estado de anomina jurídica e moral, o tema do nosso mundo, sociologicamente apontado, é a solidariedade. Uma reflexão que se dará não por meio da filosofia ou da lógica, mas com base nas ciências positivas, uma “ciência da moral”.
A questão fundamental do autor assemelha-se a de Simmel: o resultado antinômico do processo de divisão do trabalho que proporciona autonomia individual e solidariedade social. Como poderia ser o homem, ao mesmo tempo, mais livre e mais solidário? Ambos concordam que os antigos laços de solidariedade se desfizeram. No entanto, Durkheim não irá tomar o homem como um ser que parte do todo em sua construção – assim como no registro germânico – percebendo apenas sua “função” dentro de um organismo social maior. O ideal não é mais o da cultura e sim o da civilização, e na moderna civilização os indivíduos, em sua grande maioria, estão absolvidos dentro de funções especificamente econômicas, caracterizadas por um critério de sucesso, que substitui as demais esferas.
As premissas metodológicas do autor seriam sistematizadas numa obra posterior ao estudo da divisão do trabalho (DURKHEIM, 1990). Nela, o sociólogo ganharia “regras” para o seu método, sempre no intuito de captar aquilo que pertence ao registro da sociologia, dentro da perspectiva científica. O ponto que nos interessa é a afirmação de Durkheim sobre a única possibilidade de se explicar fenômenos sociais derivando-os de outros fenômenos sociais. Isso já havia sido feito tomando o direito como manifestação dos laços de solidariedade na dicotomia central da obra: sociedades antigas versus sociedades modernas (GIDDENS, 1997). Um direito que reproduz formas de solidariedade e que ainda existem, mesmo que de forma distinta, no mundo moderno.
É importante marcar essa dicotomia visto que a sociedade industrial diagnosticada por Durkheim não prescinde de regras morais. Qualquer sociedade se estrutura dentro de princípios maiores que a mantenham estável. Mesmo a liberdade individual, marca do nosso tempo, tem que ser garantida pela “regra” que rege o convívio entre os indivíduos seja ela positivada em lei ou não.
As tréguas impostas pela violência são apenas provisórias e não pacificam os espíritos. As paixões humanas só se detêm diante de uma força moral que elas respeitam. Se qualquer autoridade desse gênero inexiste, é a lei do mais forte que reina e, latente ou agudo, o estado de guerra é necessariamente crônico (...) a liberdade (entendemos a liberdade justa, aquela que a sociedade tem o dever d fazer respeitar) é, ela própria, produto de uma regulamentação (DURKHEIM, 1999: VII-VIII).
A solidariedade social é um fenômeno terminantemente moral que, sobretudo, não se presta a uma análise explícita. Ela requer um símbolo mais visível que a expresse, como dito anteriormente, o direito. Para operar o estudo, Durkheim trabalha com a categoria de sanção, classificando-a em duas formas distintas que correspondem, por certo, as formas distintas de solidariedade: uma de tipo repressivo – penal – própria de um mundo “emocional” com divisão do trabalho ainda incipiente; e, outra de tipo restitutivo – administrativo – decorrente da ampliação da divisão do trabalho e primando por uma maior racionalização das relações sociais.
A transformação que a divisão do trabalho opera é a de um estágio de pouca ou nenhuma distinção entre os indivíduos para um estágio de maior distinção. Ela torna possível a sociedade em que vivemos, momento em que o autor entende o trabalho como fonte própria de civilização: num tipo de sanção repressiva, indivíduos semelhantes são descartados caso atentem contra a moral vigente; já numa sanção de tipo restitutivo, indivíduos específicos e individualmente mais “importantes” dada sua função singular atribuída pelo mundo industrial, têm a oportunidade de ressarcir a coletividade do mal que fizeram, cooperando. Há um componente quase religioso no tipo de solidariedade mecânica (que antecede a moderna divisão do trabalho): aquele que viola o sagrado sofrerá uma vingança advinda do todo. Já a solidariedade orgânica (marca da sociedade industrial), racionaliza a consciência comum, tornando-a menos imperativa e permitindo a ascensão de personalidades individuais. Uma solidariedade de moral imperante versus uma solidariedade reflexiva.
A primeira liga diretamente o indivíduo à sociedade, sem nenhum intermediário. Na segunda, ele depende da sociedade, porque depende das partes que a compõem. A sociedade não é vista sob o mesmo aspecto nos dois casos. No primeiro, o que chamamos por esse nome é um conjunto mais ou menos organizado de crenças e de sentimentos comuns a todos os membros do grupo: é o tipo coletivo. Ao contrário, a sociedade de que somos solidários no segundo caso é um sistema de funções diferentes e especiais unidas por relações definidas (Ibidem, 106).
Um dado é central: o mundo moderno é marcadamente o mundo da economia. A divisão do trabalho vem tentar sanar necessidades que ela própria se encarrega de criar. Os indivíduos da cidade, que já havia sido descrita por Simmel como o local exemplar da modernidade (SIMMEL, 1973), têm sua vida ampliada em condições. No entanto, Durkheim percebe que as patologias sociais – como o crime e o suicídio, por exemplo – são mais freqüentes na sociedade industrial. Isso permite o autor afirmar o pregresso econômico como incapaz de reforçar os princípios morais constitutivos da autoridade que garante a existência coletiva. Certos de que a divisão do trabalho é a fonte de civilização – desenvolvendo as sociedade – falta-nos uma resposta sobre o princípio moral que impede que a vida coletiva de desfaça.
A especialização é, em Durkheim, o recurso de grande alcance moral nas sociedades modernas. É ela que faz com que todos os indivíduos, agora definidos particularmente e absolvidos pelo plano da economia, encontrem seu lugar na vida social. Essa é uma distinção marcante entre Simmel e Durkheim: não a partir do todo (cultura), mas uma solidariedade que se dá entre desiguais (orgânica) que gozam de dependência uns dos outros, como se no registro germânico o indivíduo dependesse do todo e na solidariedade orgânica ele dependesse das partes. O mundo “sem sentido”, que em Simmel decorre do processo de divisão do trabalho, tem em Durhheim seu sentido dado pelo mesmo fator.
Por mais ricamente dotados que sejamos, sempre nos falta alguma coisa, e os melhores dentre nós têm o sentimento de sua insuficiência. É por isso que procuramos, em nossos amigos, as qualidades que nos faltam, porque unido-nos a eles participamos de certa forma de sua natureza e nos sentimos, então, menos incompletos (...) Somos levados, assim, a considerar a divisão do trabalho sob um novo aspecto. Nesse caso, de fato, os serviços econômicos que ela pode prestar são pouca coisa em comparação com o efeito moral que ela produz, e sua verdadeira função é criar entre duas ou várias pessoas um sentimento de solidariedade (DURKHEIM, 1999: 21).
Simmel teria acertadamente percebido que o aumento das necessidades não precisar estar necessariamente acompanhado do aumento das suas possibilidades de satisfação. Nem Durkheim teria dito isso (GIDDENS, 1997). No entanto, o processo de especificação funcional que, segundo Simmel, fragmenta a cultura fazendo com que o homem moderno perca sua referência, será relido por Durkheim como a possibilidade de desenvolvimento da personalidade individual e não de sua negação. O homem moderno é mais indivíduo do que o homem antigo com o avanço da civilização que dá a este homem suas possibilidades de realização.
A especialização deve ser levada tanto mais longe quanto mais elevada for a espécie da sociedade, sem que seja possível atribuir-lhe outro limite. Sem dúvida, também devemos trabalhar em nós a realização do tipo coletivo, na medida em que ele existe. Há sentimentos comuns, idéias comuns, sem os quais, como se diz, não se é um homem. A regra que nos manda especializar-nos permanece limitada pela regra contrária. Nossa conclusão não é que é bom levar a especialização o mais longe possível, mas tão longe quanto necessário (...) Ninguém se prende a grande coisa quando não tem um objetivo mais definido e, por conseguinte, não se pode elevar acima de um egoísmo mais ou menos refinado. Ao contrário, aquele que se dedicou a uma tarefa definida é, a cada instante, chamado ao sentimento de solidariedade comum pelos mil deveres da moral profissional (DURKEIM, 1999: 423-424).
Mesmo que a partir de chaves distintas, ambos os autores nos falam de um processo de divisão que torna a substância qualitativa da vida passível de quantificação. Saídas distintas se devem a entendimentos distintos. De um lado, Simmel vê a infertilidade de buscarmos “distinção” num mundo que nos faz iguais por meio das categorias herdadas desse mundo – como a moda, por exemplo. Uma saída possível partiria de esferas de valor que são julgadas a partir de conceitos oriundas delas próprias, como a arte, por exemplo. O artista poderia ser encarado como o “herói” que tenta resgatar o sentido perdido do mundo. Por outro lado, Durkheim vê dentro do mundo econômico a saída: uma moral que brotaria do convívio entre corporações, grupos que precisam se encarregar de sua defesa, ocuparia o fosso aberto pelo processo de divisão do trabalho.
Talvez a leitura de Durkheim possa ser classificada dentro do sentimento comum aos “homens modernos” que habitam uma vida fragmentada de sentido: acreditar que o dinheiro cura as patologias que ele mesmo cria. Nessa perspectiva o francês teria sido enganado pela “lança mística” descrita por Simmel.
Diogo Tourino de Sousa
Referências Bibliográficas:

ARON, Raymond. (2002), As Etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo: Martins Fontes.
BOUDON, Raymond & BOURRICAUD, François. (2002), Dicionário Crítico de Sociologia. São Paulo: Editora Ática.
DURKHEIM, Émile. (1990), As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
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GIDDENS, Anthony. (1997), Política, Sociologia e Teoria Social – encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo. São Paulo: Editora UNESP.
SIMMEL, Georg. (1973), “A Metrópole e a Vida Mental”. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.), O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
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WAIZBORT, Leopoldo. (2000), As Aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34.