terça-feira, 11 de novembro de 2008

Alegoria e modernidade em Benjamin

Assim como Simmel, mas alguns anos mais tarde, Walter Benjamin também volta seu estudo para as mudanças radicais pelas quais passa a cidade na modernidade, mais especificamente, na Paris dos séculos XIX e XX, o que advém também de suas próprias experiências como observador de um mundo percebido como em ruínas. Ainda, devido à própria dificuldade em interpretar o esfacelamento da realidade social é que Benjamin irá buscar no passado um outro procedimento investigativo e expressivo, na tentativa de reintegrar em uma unidade perdida os elementos que caracterizam o seu presente. Assim, sua produção intelectual é, como em Simmel, produto do diagnóstico que ele faz do seu tempo e do material que recolhe de sua experiência da modernidade.
Como assinala Frisby (2002), o projeto de Benjamin em retroceder a uma pré-história da modernidade deve ser entendido como uma tentativa de recapturar a experiência social perdida no processo da modernidade. Para Benjamin, haveria a necessidade de uma teoria materialista da experiência, a qual repousa na distinção entre experiência individual vivida (Erlebnisse) e experiência concreta (Erfahrung) .
Benjamin percebe o contexto em que vive como um momento de pobreza e emudecimento do homem diante de um mundo decadente em significação. As mudanças características da sociedade industrial burguesa teriam incapacitado o homem contemporâneo de dar sentido à multiplicidade de objetos que o rodeiam e, portanto, à sua própria existência. A industrialização acelerada, os processos de urbanização, o rebaixamento das coisas e dos homens ao estatuto de mercadorias, o predomínio da técnica e a conseqüente perda da aura da obra de arte devido à sua ilimitada reprodução em série, a homogeneização e feitichização dos objetos e dos estilos de vida, a perda do poder nomeador da palavra transformada em mero meio de comunicação, tudo isso levaria o homem contemporâneo de Benjamin a um estado de “desenraizamento”, de incapacidade de articular suas experiências com o concreto e, portanto, de narrá-las.
Em “Origem do drama barroco alemão”, de 1925, Benjamin propõe que tal situação vivida pelo homem contemporâneo assemelha-se à da experiência do homem barroco, o qual também esteve diante de um mundo percebido como em dissolução. Ambos atuariam em um cenário permeado de cadáveres, esqueletos, ou seja, repleto de objetos esvaziados de significação, encontrando-se, dessa maneira, sujeitos à melancolia, doença da alma insatisfeita pelo excesso de materialidade a que está condenada, como define Zahira Cordeiro (1992).
A alegoria e a história enquanto cesura, correlata a ela e diversa da concepção de história enquanto progresso, permitem ao crítico, ao poeta, e ao sujeito do conhecimento histórico de um modo geral, “salvar as coisas” que são partilhadas na modernidade com horror e prazer, por entre os detritos dessa experiência histórica, e destituída de alma, do homem moderno, a experiência vivida do choque, como descreve Maria João Cantinho. Segundo essa autora, Benjamin investiga a modernidade com um misto de horror e encantamento: horror por reconhecer no moderno formas degeneradas e decadentes (alegorizadas pela prostituição, pela flânerie, pelo jogo, pelo trapeiro, pelo fetichismo da mercadoria, pela moda...); encantamento pelo que se constrói no apelo à compreensão da decadência, da morte, da ruína. Poderíamos afirmar que o fascínio de Benjamin parece proceder da necessidade de compreender, submergindo no seu objeto, procurando determinar a lei oculta de um procedimento estético que teve, na sua época, o seu clímax e que foi o procedimento alegórico, como afirma Cantinho.
Assim, alegoria e modernidade são unidas, em Benjamin, “pela concepção barroca da história, unidos igualmente por um saber que não é capaz de encontrar a sua saciedade, auto-absorvendo-se nessa remissão infinita que não conhece o seu repouso” . Benjamin percorre seu tempo como um alegorista, reunindo seus cacos, trabalhando com a diversidade de temas “menores” oferecendo-lhes a redenção pela significação. Diz armazém para tratar de moda, do “novo”; diz panorama para tratar das novas formas de percepção, expressão e sentimento da vida; diz fotografia e cinema para dizer da destruição da aura e da substituição de valores artísticos na modernidade (de culto para o de exposição); diz Nikolai Leskov para dizer da perda da faculdade de intercambiar experiências; diz lirismo e Charles Baudelaire para falar da possibilidade de redenção (alegórica, profana, revolucionária) e, em última análise, de Walter Benjamin.
E é assim, misturando atitudes do trapeiro, do colecionador, do flâneur e do cismativo, em suma, é como alegorista, que o sujeito do conhecimento histórico pode lidar com a “experiência” moderna, marcada pelo choque, pela perda da experiência e pelo declínio da aura, os quais encontram-se intrinsecamente ligados e são colocados sob o pano de fundo do tédio e da melancolia. Cantinho explica que
“dizer perda de experiência significa falar da experiência do choque [Chockerlebnis], visto que toda a experiência do homem do século XIX nos aparece à luz dessa impossibilidade de uma experiência autêntica [Erfahrung]”. A experiência do choque nasce e desenvolve-se, par a par com a consciência do declínio da aura [...], declínio que faz nascer um mundo ilusioriamente transfigurado, permitam-nos a expressão, “fantasmagorizado”, mediante a necessidade de tornar suportável a história arruinada, num mundo marcado pelo fétiche da mercadoria”. (CANTINHO, 2003)
A noção de fantasmagoria em Benjamin teria, segundo Rolf-Peter Janz, duas dimensões: uma negativa, referente à sua função de transfiguração falseadora, patente no olhar do flâneur e do jogador; e uma positiva, referente à possibilidade de congregar em si as imagens-desejo da coletividade, vislumbradas na figura do colecionador, o qual procura libertar a mercadoria de sua utilidade mercantil. É este aspecto positivo que, segundo Cantinho, atenua a experiência do choque, mas que desaparece no olhar do flâneur, pois este não vê as coisas tal como elas são, mas sim como convém a esse olhar, nas palavras de Janz por ela citado.
Assim, a experiência moderna é marcada pela embriaguez proporcionada pelos efeitos fantasmagóricos (enganadores) de sua arquitetura, da técnica, das galerias, da mercadoria, que levam a um estado de “sonolência coletiva”.
Porém, percorrendo a cidade sob a aparência deste olhar desatento, o flâneur é um homem “cuja volúpia reside na decifração dos sinais e das imagens: algo que pode ser revelado por uma palavra deixada ao acaso, uma expressão capaz de fascinar o olhar de um pintor, um ruído que espera o ouvido de um músico atento” . Dessa forma, o olhar do flâneur esconderia a mais profunda agitação interior. O que permitiria a mediação entre estas duas características da flânerie (experiência do choque, da fantasmagoria e da sonolência, de um lado, e, de outro, da produção de significados), é, segundo Cantinho, a meditação melancólica, condição essencial da produção alegórica. O flâneur não direciona às coisas um olhar ingênuo e iludido, mas sarcástico e gélido, um olhar barroco, “o qual inflecte sobre si mesmo, mediante o acto da rememoração e que constrói imagens poéticas”. Está na ordem do saber reflexivo do cismativo, este que é feito da mesma “matéria” que o alegórico:
“A rememoração do cismativo dispõe da massa desordenada do saber morto. Para ele, o saber humano é fragmentário num sentido particularmente pregnante: ele reúne (...) e contrói um puzzle. Uma época que é inimiga da meditação, conservou o gesto no puzzle. Este gesto é, em particular, o gesto do alegorista que toma aqui ou ali um pedaço no monte confuso que o seu saber põe à disposição, coloca esse pedaço ao lado de um outro e tenta fazê-los conjugar: tal significação com tal imagem e tal imagem com tal significação.” (BENJAMIN apud CANTINHO, 2003)
Benjamin entende que é assim que age Baudelaire, buscando estabelecer a mediação entre a imagem e a significação, no interior da rememoração poética. Crítico e poeta “na busca de redimir as coisas, num gesto alegórico, juntando à significação uma imagem e vice-versa” . Essa seria a visão alegórica, saturnina e melancólica como refere Benjamin, visão esta encontrada no olhar barroco e na sua concepção arruinada da natureza e da história. Este, portanto, seria o papel mediador da alegoria na investigação e na própria vivência da experiência moderna.
Isabella Mendes Freitas
Referências bibliográficas:
BENJAMIN, Walter.Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas. São Paulo, Brasiliense, 1985.
_________.Magia e Técnica, Arte e Política, Obras escolhidas. São Paulo, Brasiliense. 1985.
_________.Origem do drama Barroco alemão. Tradução, apresentação e notas: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1984.
_________.Paris, capital do século XIX, in: BENJAMIN, Walter. Sociologia. São Paulo, Ática, 1985.
CANTINHO, Maria João. Modernidade e alegoria em Walter Benjamin. Espetáculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid, ano VIII, n.24, 2003. Disponível em:
http://www.ucm.es/info/especulo/numero24/benjamin.html.
CORDEIRO, Zahira Souki. A alegoria como conceito: uma leitura benjaminiana do barroco. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1992.
HELENA, Lucia. Um sultão no reino das coisas. Alea, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2003.

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