segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O uso da cetagoria Fetichismo em Marx e Simmel

O trabalhador se torna mais pobre quanto mais riqueza ele produz, quanto mais sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.
Karl Marx – O trabalho alienado (manuscritos econômico-filosóficos de 1844).
Tornam-se compreensíveis dois fenômenos negativos correspondentes da história do espírito. Um deles é o fato de pessoas do mais profundo interesse cultural apresentarem, amiúde, uma estranha indiferença – e mesmo recusa – paca com os conteúdos objetivos da cultura (...) Um outro é o surgimento de fenômenos que apenas parecem ser valores culturais, com certas formalidades e refinamentos da vida.
Georg Simmel – O conceito e a tragédia da cultura.
O extermínio das antigas formas de sociabilidade operado no desenvolvimento da sociedade industrial ocasiona um fenômeno que une analiticamente Marx e Simmel, sob o abrigo da noção de “fetichismo”: a desvalorização do “mundo dos homens” relacionada ao florescimento do sistema capitalista. Certamente o século XIX testemunha uma fundamental ampliação nas possibilidades de realização do homem, tendo a divisão do trabalho como motor. No entanto, a criação de valores materiais que se sobrepõem aos valores tipicamente humanos apresenta-se como uma conseqüência negativa inevitável no transcurso do avanço de trabalho industrial.
O aumento do potencial produtivo – marca do capitalismo nascente – não significou igualdade de condições no acesso aos bens materiais gestados pelo trabalho. Foi a própria incapacidade de colocar os homens em patamar de igualdade que criou o mote para reflexão social desde o século XIX (ARON, 2002): a riqueza produtiva que não implicou valorização do elemento humano é o produto “traumático” de uma realidade cujo capital – por meio de uma dinâmica autônoma – subjuga as demais esferas da vida ao seu critério de sucesso. É precisamente nesta unidade reflexiva que Marx – em termos históricos – e Simmel – numa chave cósmica, metafísica – vão formular “biografias” para o mundo moderno, exercício hora anatômico, hora místico.
Na raiz de tudo isso um processo que pode ser encarado como a “possibilidade” de realização: a divisão do trabalho. O desenvolvimento do capitalismo e o aumento da divisão do trabalho são dados indissociáveis, o que faz deste matéria recorrente na reflexão sociológica. Fatalmente Marx e Simmel também se ocupariam de tal assunto no intento de procurar causas para a conseqüência última observada na sociedade industrial: o homem que perde valor perante as coisas materiais que ele criou.
Nosso Marx, aqui, é o “cientista” – mesmo dotado de militância, paixão – que ainda demonstra a influência de Hegel mesmo nos estudos do “Capital”. Alguém que parte de uma espécie de antropologia filosófica para dissecar a sociedade capitalista, percebendo o movimento dialético em sua unidade mais elementar. Nosso Simmel será, sempre, o “vitalista” que não apenas foge da síntese, mas se exime de procurá-la. Alguém que “refina” sua análise da história à metafísica procurando uma filosofia que sustente seu olhar sobre o efêmero. Entre ambos mais a possibilidade de “contraste” do que de confronto: a partir de “ferramentas” talvez distintas, os autores caminham analiticamente pelo mundo contemporâneo “sem sentido”, buscando lastro em fenômenos como a divisão do trabalho. O tratamento que Simmel dá a este tema será desenvolvido com maior profundidade em sua reflexão voltada para a formulação de uma “filosofia da cultura” (aqui discutida na postagem sobre Cultura e Civilização em Simmel e Durkheim).
O componente da “paixão” presente no “Capital” situa-se precisamente na imaginação inicial – realizada nos manuscritos de 1844 – de uma sociedade utópica onde as condições de liberdade poderiam ser encontradas, em concomitância a postulação a priori de uma natureza humana atemporal. Ainda prematuramente, o tema do fetichismo tem em Marx uma denominação filosófica hegeliana: alienação, ou estranhamento na terminologia idealista. Noção esta que está pulverizada na sociedade capitalista industrial, dotada de uma lógica que faz do produto do trabalho algo maior que o próprio trabalhador: seres humanos criadores que se perdem no interior de suas próprias criaturas. Aqui a idéia de “queda” do homem – presente no mito judaico-cristão – é estendida para “todas as esquinas” do mundo moderno (BOUDON & BOURRICAUD 2002). Essa reflexão sobre o ser e o objeto é o ponto de interseção entre Marx e Simmel com nuances conclusivas distintas, porém não opostas.
Como eliminar o trabalho “alienado” é uma pergunta talvez inocente ante o desafio de descrever o mundo em que ele se encontra. Ainda porque, abolir a divisão do trabalho nas sociedades complexas é uma alternativa descartada até no diagnóstico de “anomia” dado por Durkheim (ver a discussão abaixo sobre Durkheim). Suspenso, mesmo que apenas na aparência, o furor “revolucionário”, a tarefa a qual Marx se propõe é estudar a anatomia do mundo contemporâneo (capitalista), sendo ele o momento onde o desenvolvimento da história da humanidade culmina. A proposta é analisar o menos desenvolvido e o processo do desenvolvimento, partindo da mais desenvolvido. Marx associa o método histórico ao dedutivo.
O princípio ordenador a partir do qual entenderemos a sociedade é a forma mais elementar de riqueza encontrada no “teatro” capitalista: a mercadoria. Esta, tomada isoladamente, constitui o princípio molecular do mundo que a acumula. É importante como Marx começa por definir a mercadoria a partir da idéia de “necessidade”, pois é justamente esta que, sendo elaborada socialmente, abre caminho para o fetiche: “o apetite do espírito é tão natural quanto a fome para o corpo”.
A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção (MARX, 1968: 41).
A “necessidade” e a “utilidade” passam a ser noções indissociáveis na conceituação da mercadoria: é a eficácia na satisfação das necessidades que imputa nas mercadorias seu “valor” por meio de um princípio de “utilidade”. Fato é, que no reino do útil a qualidade da mercadoria não depende da quantidade de tempo empregado na sua consecução. Sua valoração não prima, inicialmente, pela eficiência. As “necessidades” podem ter origens diversas, ganhando cores e intensidades desafiadoras num processo de quantificação, já que também se ligam a condições do “espírito”. Satisfazê-las obedece a ordem o terminantemente subjetivo. Sendo assim, como o “valor” da mercadoria pode ser traduzido em quantidade? A questão aqui é tornar objetivo o sentido que habita a subjetividade: a utilidade das coisas.
O processo de divisão do trabalho tornou a sociedade mais complexa – dividiu funções e especializou modos de agir – fenômeno que amplia as possibilidades da vida coletiva, mas que cria “novas” necessidades. Essa leitura, quase pacífica e compartilhada por Marx e Simmel, percebe algo que antes não se impunha enquanto obrigação colocar-se agora como uma realidade inescapável: intercambiar os produtos do trabalho. De acordo com isso, a sociedade capitalista teria que forjar um recurso capaz de colocar em igualdade “objetiva” os diferentes “trabalhos” empreendidos na produção das distintas mercadorias. O dinheiro será o resumo desse desenvolvimento e o recurso mais poderoso do mundo do capital.
Na pretensão de um estudo científico Marx vai reconstruindo respostas caras à análise econômica. Ele afirma uma duplicidade de “valor” – herança hegeliana – quando a unidade elementar da exploração já encerra em si um princípio dialético: mercadorias são dotadas de valor-de-uso e valor-de-troca. O primeiro é da ordem da satisfação, liga-se a condições subjetivas do desejo e pode diferir essencialmente de um para outro. Já o segundo corresponde a imposição de “trocar” distintos valores-de-uso no interior da sociedade complexa, sendo iguais quando em quantidades iguais. A utilidade constrói um valor-de-uso estando associada ao consumo do que se produz e a suas qualidades materiais. Resta-nos saber como alcançamos um valor-de-troca.
O valor-de-uso só se realiza com a utilização ou o consumo. Os valores-de-uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma dela. Na forma da sociedade que vamos estudar, os valores-de-uso são, ao mesmo tempo, os veículos materiais do valor-de-troca. O valor-de-troca revela-se, de início, na relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies diferentes, na proporção em que se trocam, relação que muda constantemente no tempo e no espaço. Por isso, o valor-de-troca parece algo casual e puramente relativo, e, portanto, uma contradição em termos, um valor-de-troca inerente, imanente à mercadoria (...) As propriedades materiais só interessam pela utilidade que dão às mercadorias, por fazerem destas valores-de-uso. Põem-se de lado os valores-de-uso das mercadorias, quando se trata da relação de troca entre elas (...) Como valores-de-uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de qualidade diferente; como valores-de-troca, só podem diferir na quantidade, não contendo portanto nenhum átomo de valor-de-uso (MARX, 1968: 42-44).
Se as mercadorias são purificadas de utilidade num momento de troca, o que as valoriza? Para Marx, a dualidade de valor é sustentada por uma natureza também dual do trabalho empregado na produção: um de natureza concreta, e outro abstrato. Por um lado o trabalho concreto – encarregado do valor-de-uso – corresponde à atividade produtiva de um determinado tipo, que visa um fim determinado. Por outro, o trabalho abstrato – contabilizado no valor-de-troca – correspondendo a qualquer ato de trabalho, considerado separadamente de suas características específicas, simplesmente como dispêndio de força de trabalho humano no sentido fisiológico. O primeiro indispensável à existência do homem, o segundo socialmente necessário.
Assim, a mercadoria só assume a feição que a conceituamos quando possui uma dupla forma: a natural – utilidade – e a social – troca. Estudar a gênese da forma como as sociedades complexas realizam suas trocas requer o acompanhamento de como o valor de desenvolveu da sua forma mais simples até sua forma mais elevada: o dinheiro.
A mercadoria, dado seu duplo caráter, supõe uma sociedade determinada para qual ela foi produzida. Enquanto troca ela esconde a especificidade do concreto: essa cisão entre sujeito e objeto constitui o tema do fetichismo. Minha tarefa é descobrir o motor que vai tornando as relações sociais cada vez mais “opacas”, formando um processo de alienação numa economia que se tornou tão autônoma – criando uma linguagem própria – que se vê hoje distante do mundo que a sustenta. O fetichismo da mercadoria é a expressão exemplar de autonomia da criatura diante do criador.
O “segredo” escondido na mercadoria ao qual Marx se refere, criador de uma “opacidade” incômoda no mundo moderno, não está no valor-de-uso e nem ao menos na determinação de seu valor-de-troca. A questão é que ao quantificar relações e abolir a importância qualitativa do trabalho a mercadoria torna-se “misteriosa”, como que um resumo possível do homem.
A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho (...) Esse fetichismo do mundo das mercadorias decorre conforme demonstra a análise precedente, do caráter social próprio do trabalho que produz mercadorias (...) A igualdade completa dos diferentes trabalhos só pode assentar numa abstração que põe de lado a desigualdade existente entre eles e os reduz ao seu caráter comum de dispêndio de força humana de trabalho, de trabalho humano abstrato (MARX, 1968: 81-82).
A conclusão do autor é negativa: objetivações – a abstração da utilidade em valo-de-troca, em dinheiro – se autonomizam adquirindo uma lógica própria que desafia o homem e mascara a desigualdade social. O tema do fetichismo tratado em Marx será uma manifestação particular do que Simmel entenderá como o fenômeno geral ocasionado pela divisão do trabalho, motivo de tensão do mundo ocidental: a diferenciação da cultura subjetiva e objetiva (SOUZA, 2005).
O dinheiro, como resultado do processo descrito por Marx, será o sujeito de um mecanismo “trágico” de objetivação da vida, redutor da qualidade da cultura a um equivalente em quantidade que dispensa formas tradicionais de solidariedade e promove uma sensação de liberdade peculiar ao mundo moderno (SIMMEL, 2005a). Movimento que faz das personalidades individuais “coisas” objetivas significadas exemplarmente num instante de troca: homens que agora não negociam o que são, mas resolvem o que querem a partir do meio mais eficaz de obterem: num ato de troca cancela-se o subjetivo tornando-o supra-individual.
Nessa função, o dinheiro confere, por um lado, um caráter impessoal, anteriormente desconhecido, a toda atividade econômica, por outro lado, aumenta, proporcionalmente, a autonomia e a independência da pessoa (SIMMEL, 2005a: 24).
O aumento da divisão do trabalho e a conseqüente especialização fazem com que a economia ganhe um lugar privilegiado em todos os espaços da vida. A “alienação” que Marx identifica no âmbito da produção será estendida por Simmel à esfera da circulação: uma vida que se expressa em “formas” que ganham autonomia e se sobrepõem a ela. Um desejo que tem sua intensidade medida pelo dinheiro.
No transcurso da troca o valor que serve de “meio” foi traduzido num equivalente em dinheiro. O fato de que indivíduos ganham identidades variadas no interior da sociedade especializada faz com que a finalidade da mercadoria produzida seja a aquisição de outras mercadorias de real interesse. A cadeia que liga os sujeitos – conceituação simmeliana de cultura (postagem sobre Cultura e Civilização em Simmel e Durkheim). – se amplia e a satisfação da necessidade se distancia no horizonte da circulação: objetos que perdem seu valor-de-uso, numa terminologia marxista, tendo apenas um valor-de-troca que orbita de forma “fantasmagórica” no vazio.
Na medida em que o homem torna-se mais “cultivado” sua cadeia teleológica se amplia afastando a satisfação imediata (WAIZBORT, 2000). Isso o obriga a se relacionar com os demais no intuito de satisfazer suas necessidades agora mediadas.
Quem lamente o efeito separador e alienador do intercâmbio monetário não deve esquecer o seguinte: o dinheiro gera uma ligação extremamente forte entre os membros de um setor econômico pela necessidade de trocar dinheiro para obter valores definidos e concretos. E precisamente porque o dinheiro não pode ser consumido imediatamente, ele aponta para outros indivíduos, dos quais se pode exigir o que se quer consumir (...) Na medida em que o dinheiro possibilita a divisão do trabalho, ele encadeia os homens de maneira irresistível, pois agora cada um trabalha pelo outro. Somente o trabalho de todos gera a união econômica abrangente que completa os desempenhos unilaterais do indivíduo (SIMMEL, 2005a: 26-27).
Há um aspecto intrigante na divisão do trabalho assim descrita: um processo que hora une, hora separa. Une porque os homens agora ligam-se em laços de dependência mutua. Separa, pois o sentido do que são perde-se nos meios procurados para se realizarem colocando-os no anonimato. É a falsa liberdade escondida na ampliação de condições enaltecida por Durkheim (discussão sobre Durkheim abaixo). O fato de que no mundo moderno os homens – agora livres de solidariedades tradicionais – gozam de liberdade de escolha atribui mais valor àqueles que possuem o meio de entrada do “jogo” de trocas: o dinheiro. Cria-se uma cultura dos meios, perde-se a noção dos fins.
Não se percebe que o dinheiro pe meramente um meio para obter outros bens – pensa-se nele como se fosse um bem autônomo, quando toda sua significação advém do fato de ser um elemento numa seqüência que leva e um fim e a um consumo definidos (...) O dinheiro, anteriormente um puro meio e uma premonição, torna-se, intimamente, alvo final (...) O dinheiro é, propriamente, nada mais que uma ponte aos valores definitivos, e não podemos morar numa ponte (SIMMEL, 2005a: 33).
A modernidade marca o protagonismo das coisas em detrimento dos sujeitos. Uma vida que passa a ser regida por critérios exteriores a ela: como o meio impessoal para satisfazer a necessidade não tem “cor”, é vazio de personalidade, o estilo de vida moderno deve primar pelo cálculo no sentido de ampliar suas chances de ser feliz (WAIZBORT, 2000). O homem da intelectualidade, da racionalidade, está situado numa posição favorável em relação ao homem que se move pelo sentimento: é a perda do elemento espontâneo da vida. Aqui uma liberdade que entra em xeque: viver é me adaptar aos demais.
Diogo Tourino de Sousa

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