terça-feira, 11 de novembro de 2008

A tragédia da cultura e o problema do homem moderno

Em “O conceito e a tragédia da cultura”, de 1911, Simmel assinala que o espírito produz formações diversas (como a arte, os costumes, a ciência, a religião, o direito, a técnica e as normas sociais) que passam a ter uma autonomia própria; o sujeito passa a confrontar-se com essas formações e, nestas, o espírito converte-se em objeto. Haveria uma oposição entre a vida subjetiva, que é incessante mas temporalmente finita, e seus conteúdos, que, uma vez criados, se cristalizam em formas imóveis, mas válidas intemporalmente. Em “O conflito na cultura moderna”, de 1918, Simmel sugere que as formas seriam estruturas para a vida criativa, a qual, entretanto, as transcenderia. Elas adquiririam identidades fixas e uma lógica própria, e esta rigidez inevitavelmente as colocaria distantes da dinâmica espiritual que as criou e as tornou independentes.
O conceito de cultura estaria imbricado em meio a esse dualismo entre espírito e forma, no qual o espírito se converte em formas que se autonomizam e que, no entanto, o sujeito deve abarcar em si mesmo para que realize a própria idéia de cultura. O processo da cultura estaria inscrito na dialética de sujeito e objeto, que marcam pólos opostos e insolúveis. Por esta razão, as pontes de que fala Simmel seriam provisórias e inconclusas, relações que se estabelecem entre sujeito e objeto. O processo de cultura é a fusão momentânea, subjetivação do que é objeto, objetivação do que é sujeito; a cultura é concebida por Simmel como o ponto de cruzamento de sujeito e objeto, síntese única entre espírito subjetivo e espírito objetivo – síntese que não é acabada, passiva e unívoca. Na medida em que os dois pólos se encontram, o sujeito incorpora o objeto e torna-se assim um sujeito mais rico, no sentido de que sua subjetividade é enriquecida.
Como pode ser percebido, tal processo abarca um caráter trágico, intrinsecamente presente no conflito entre espírito e objetos, entre vida e formas. No moderno, em especial, o objeto sairia de sua original posição mediadora, ganhando autonomia e rompendo com a circularidade do processo cultural. Na medida em que os objetos de autonomizam, eles se isolam dos sujeitos que os objetivaram, até um ponto em que eles nada mais dizem sobre estes. Os objetos deixam de ser meio e se tornam o fim daquela corrente teleológica, bloqueando o processo cultural. Aqui se instaura a tragédia da cultura. Predomina, na época da cultura trágica , aquela “forma intermediária da objetividade”, em que os objetos seguem suas lógicas próprias, independentes do processo que os criou (eles são espírito objetivado) e independentes do fim que lhes era atribuído (eles eram meios dos sujeitos). Por isso Simmel fala da “fatalidade dos elementos culturais”, pois que a lógica própria do desenvolvimento dos objetos não afina necessariamente (e historicamente) com os sujeitos. Em resumo, “a tragédia da cultura é essa transformação descontrolada e desintegradora dos meios em fins: o homem, o verdadeiro fim, torna-se meio; o objeto, o verdadeiro meio, um fim em si mesmo, ao qual os homens acabam por se submeter”.
Com isto, Simmel ampliaria a um registro universal o fetichismo da mercadoria, ao afirmar que a “situação problemática típica do homem moderno” é a “preponderância do objeto sobre o sujeito”. A objetividade enquanto forma possui uma capacidade de realização ilimitada, e tal característica afeta os sujeitos naquilo que eles têm de mais profundo, sua subjetividade, que se vê dominada pela forma objetual, ao invés de dominá-la segundo seu desejo. Portanto, o caráter fetichista que Marx atribui aos objetos econômicos seria, em Simmel, apenas um caso especificamente modificado deste destino universal de nossos conteúdos culturais .
O empenho de Simmel dirige-se à investigação das raízes dessa alienação (dos objetos em relação aos sujeitos) na modernidade, do rompimento da corrente, da transformação dos meios em fins. A origem de tal situação estaria na divisão do trabalho, causa da superação da cultura subjetiva pela objetiva. A partir da percepção de Simmel sobre as crescentes diferenciações operadas na modernidade, inclusive na esfera do trabalho, esta se apresenta como um crescente processo de distanciamento (alongamento da cadeia dos meios), que também consiste em um distanciamento entre os sujeitos, como veremos na análise sobre as grandes cidades.
Isabella Mendes Freitas
Referências bibliográficas:

SIMMEL, Georg. Subjective culture. In: Georg Simmel on individuality and social forms. Edited by Donald N. Levine. Chicago: The University of Chicago Press, 1971.
______. Filosofía del Dinero. Traducción e introducción de Ramón García Cotarelo. Granada, Editorial Comares, S.L., 2003.
SOUZA, Jessé, ÖELZE, Berthold (orgs.). Simmel e a modernidade. Brasília: Editora da UNB, 1998.
WAIZBORT, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.

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